quinta-feira, 18 de junho de 2009

Quase póstuma



Há muito escrevi esta derradeira carta, lembro dos dias ao teu lado, mãos dadas. Lembro de suas palavras ao dizer que haveria um momento tão glorioso no qual eu desejaria a morte. Fecho os olhos, tiraram-me a vida, estou indo e vou feliz por ter conhecido você. Lembro aqueles dias em que eu em minha insegurança apaixonada usava palavras como lança para ferir o único que eu não desejava como alvo da dor. E ao final de tudo chorava em teu ombro. Parece que foi ontem e já faz tanto tempo... Agora o que posso fazer com estes minutos que restam? Só lembrar de você para adormecer com o teu gosto nos lábios, ainda que seja um beijo lembrado, assim fiz noites e noites a fio. Para mim tudo parecia tão simples, tão certo, sentia-me forte. Resignada reconheço a finitude das coisas.
O coração bate cada vez com mais vagar e há uma vida a recordar. Não estás aqui, há anos não estás. Eu sei, afinal nunca dissestes que estaria. Mas isso não importa mais, não agora.
Aonde estive senti tua falta e tua presença, nas vidas que vivi, não lembro ao certo do dia em que traçamos caminhos diferentes e disso faço questão de esquecer. Resta pouco enfim e quero só os momentos felizes. Momentos depois do amor em teus braços, teus olhos...de um castanho tão comum e para mim, tão fascinante. Aprendi a ver as cores da vida através deles. Os traços de teu rosto...posso até senti-los outra vez. Meus filhos nunca compreenderam porque eu ficava a contemplar céu e mar até estes gerarem a primeira estrela. A estrela azulada, a amada vésper. Estavas certo, és fruto dos céus e dos mares. E eu com olhar de quem se perdeu, revivia. Momentos a sós, eu e você...em mim.
Olho ao redor, procuro teu sorriso, teus traços nos rostos dos meus...em vão. Alguém segura-me as mãos, chora. Por que? Está na hora, quase tudo fiz. Até amei um ser poeta com alma de pássaro. As pálpebras pesam terrivelmente, só alguns pedaços de vida desfilam rapidamente: amigos, viagens, fotografias, peças teatrais, filmes que não dividi com aquele que melhor do que eu, percebia a técnica, aquele que tudo indagava. Aquele a quem sempre fui translúcida. Minha coletânea de poesias que publiquei, pedaços meus, consequentemente seus. Certa vez, sem pretensão, entrei numa livraria e te encontrei versificado. Com teu livro nas mãos, mais uma vez, teus versos me fizeram chorar. E se possível, mais um pouco te amei.
És imagem vívida na memória e gravada – nem agora direi para sempre, não acreditarias!- a ferro nesta alma que se despede. Baixam as cortinas, meu corpo treme, tenho que ir, escuto os últimos aplausos...nos lábios delineia-se o último sorriso de quem agoniza reencontrando na imortalidade um pouco deste amor, penso, imortal. (14.06.98)


p.s.: Há vários roteiros para o espetáculo, como atriz não o determino, na maior parte do tempo sigo o texto. Nas entrelinhas contudo, crio o meu. Aonde chegarei? Não saberei até chegar.